Era seu primeiro dia como voluntária. Era, então, uma mulher perto de seus 40 anos.
Acabara de chegar naquele espaço, ávida por ajudar e sem saber exatamente como proceder. Era o começo da Associação, e havia, naquela época, muito amadorismo —
inclusive no sentido que essa palavra carrega de se “fazer por amor”. Apesar da sua boa vontade, estava visivelmente perdida por aqueles corredores, sem orientações, protocolos ou regras pré-estabelecidas.
Então, ela entrou em um quarto, pôs-se a ouvir o paciente, fez uma pergunta. Ele respondeu, aí ela fez outra e pronto… Nascia, ali, uma voluntária. Todo o restante
ficara pequeno diante da potência de colocar-se disponível para alguém.
O começo foi difícil. Na ânsia de ser útil, atendia de pronto ao pedido de um copo de água, sem saber que existem doentes que estão em restrição hídrica. Querendo
mostrar-se solidária, cedia à emoção dos abraços, apertos de mão e até sentadinhas no leito para uma conversa mais prolongada. Não sabia que, desse modo, poderia contaminar os pacientes e colocar em risco sua sempre baixa imunidade.
Foi aprendendo, com o tempo, que tinha que resguardar-se também e que, apesar da solidão que sentia, por empatia, vindo daquelas pessoas, não poderia visitar doentes em isolamento, sob o risco de ela mesma adoecer. Certa vez, querendo promover uma aproximação entre dois rapazes que dividiam o mesmo quarto, levou um jogo
de dominó. “Assim, eles terão que ficar frente a frente, o que certamente fará com que troquem experiências, histórias e, quem sabe, até confidências” — pensou. Mas ela
não contava com o fato de que um deles fosse evangélico: para sua fé, aquilo não é uma brincadeira e sim um jogo de azar. Portanto, algo proibido. O que poderia ser um fator de integração terminou por desencadear um conflito religioso entre os pacientes. E ela aprendeu que religião e política são assuntos que é melhor manter à distância, até dentro de um hospital, caso o que se almeje seja a integração.
De futebol, só para quebrar o gelo, ela falava de vez em quando, sempre que não houvesse “riscos”. Às vezes, havia dificuldades até com os enfermeiros. Ao entrar no quarto de um senhor bem idoso (já muito castigado pela doença), percebeu-o muito nervoso, pedindo por um urinol. Ele não queria correr o risco de molhar a cama de novo, como havia feito pela manhã. Apesar de ter chamado insistentemente por ajuda, ninguém havia aparecido. Sensibilizada com a situação, a voluntária correu ao balcão da enfermagem e, alterada, pediu urgência naquele atendimento. Entendeu, com o tempo, que as coisas não funcionavam daquele jeito. Que as demandas são muitas, os pacientes inúmeros e há uma certa ordem quanto ao que é considerado emergência em todas aquelas situações.
Talvez episódios como esses tenham influenciado certa funcionária a chamar-lhe de “dondoca desocupada”.
Isso fez com que ela e o grupo de voluntários refletissem sobre a existência desse preconceito: cabelos brilhantes e bem tratados, ou roupas e acessórios de marca não combinavam com quem queria fazer o bem. Eu me pergunto: por que isso acontece? De onde vem esse pensamento? Por que é tão automático rotular, à primeira vista, o que nos divide, em vez de nossos pontos de conexão?
Ainda bem que, depois de algum tempo de atuação da voluntária e de seu grupo, a permanência das suas ações foi ficando mais forte e tudo isso foi se dissipando.
Mesmo naquela época, no entanto, ela já colecionava provas de que havia outros olhares. Em um desses dias gelados de julho, estava a jovem senhora no meio de uma animada conversa com uma adolescente, quando a menina começou a chorar, emocionada, dizendo não entender como alguém saía de casa, com aquele frio, para falar com um estranho e reforçando como estava grata e feliz com a conversa. Uma troca de olhares, em mútuo reconhecimento, é capaz de fazer milagres.
A voluntária saiu — ela sim — com o coração aquecido por todo o inverno!
Aquela jovem senhora era eu. Os quase 20 anos passados desde aquele primeiro trajeto no corredor, tiraram-me o “jovem”. Sou, agora, uma senhora que conseguiu cercar-se de gente do bem, aprendeu com os erros e segue aprendendo.
A força do voluntariado não está no tamanho das soluções individuais, mas na soma dos êxitos. O que nos tornamos, ao longo dessa jornada, é nosso presente da vida.