Olhos esverdeados, grandes, expressivos. Uma pitada de mel na cor e na doçura de sua expressão.
Como podiam ser tão serenos? Qual era a força que residia nessa moça jovem, vinda da Síria?
Entrei no quartinho da UTI com a voluntária Livia, que havia sido chamada para falar em inglês com Ayla, já que esta não falava uma palavra em português. A paciente logo
se apressou em exibir seu bebê, Jamal, ressaltando como seus olhinhos também eram grandes e claros. Parecia não se amedrontar com aquela quantidade de tubos, sondas e curativos. Olhava para ele, encantada, fazendo-lhe carinho com a ponta dos dedos, tão suavemente que parecia quase nem encostar em seu rostinho sonolento.
Nem precisava entender árabe para descobrir que “iahabib” significava algo como “meu amor”, tamanho era o carinho com que ela dizia isso para ele, repetidas vezes. Livia
e eu, avós de crianças pequenas, nos emocionávamos cada vez que entrávamos na UTI, onde eles estavam. Como não se colocar no lugar dessa mãe?
Já havia dois meses que ela viera da China com o marido, sírio como ela. Sim, eram sírios, mas, quando resolveram ficar juntos, deixaram o país para iniciar uma nova
jornada na China, em busca de novos negócios e melhores oportunidades de vida. Moravam em uma cidadezinha no norte, quase na fronteira com a Rússia, onde a temperatura, boa parte do ano, beirava os 30 graus negativos.
Começaram a pensar em ter um filho, mas um lugar tão inóspito não era o que idealizavam para formar uma família. Queriam um novo país, novos horizontes. Queriam
uma nova vida. Optaram pelo Brasil, lugar quente, receptivo, e com uma grande população síria. As revoltas e conflitos da chamada “Primavera Árabe” — onda de revoluções populares contra governos do mundo árabe que haviam eclodido nos anos anteriores, ampliando muito o número de imigrantes sírios que buscavam o Brasil com sua nova pátria.
Ayla engravidou. Gêmeos! Organizaram uma viagem ao país escolhido para que os bebês tivessem a nacionalidade brasileira. Isso facilitaria os trâmites da futura imigração. O plano era: os gêmeos nasceriam, depois eles voltariam para a China para que Ayla terminasse seu doutorado em línguas, e, uma vez formada, eles se mudariam para o Brasil em caráter definitivo. Mas vida real não segue roteiros e a variável.
Mas vida real não segue roteiros e a variável destino apareceu em cena. Os gêmeos nasceram com uma anomalia cardíaca. Após o nascimento, foram encaminhados ao InCor, onde seriam operados. Ayla e seu marido, Issa, foram surpreendidos por essa abrupta mudança de planos. Depois das primeiras semanas no hospital, ele voltou à China para encerrar seus negócios, entregar o apartamento alugado e trazer seus pertences. Enquanto isso, Ayla ficaria no hospital, acompanhando a recuperação dos pequenos. O bebê mais velho, Kaled, recebeu alta. Não poderia ficar mais no hospital, sob risco de pegar alguma infecção.
Ela o levou para um quarto de hotel, onde improvisara um pequeno bercinho. Era ali que ele era amamentado e cuidado. Jamal não teve o mesmo sucesso e foi operado pela segunda vez. Ayla se revezava entre um e outro — entre o hotel e o hospital. E foi aí que a encontrei: na angústia de cuidar dos dois, contra tantas adversidades.
Enquanto ela ia ao hospital em busca de informações sobre Jamal, Kaled ficava no hotel com uma senhora — também síria — que havia sido apresentada a Ayla pela igreja, para ajudá-la nessa difícil tarefa. Em uma dessas visitas, a voluntária Livia teve uma longa conversa com Ayla.
Recomendou-lhe que se concentrasse nos cuidados com Kaled, que só tinha a ela naquele momento. Era necessário que ele se fortalecesse, que mamasse, e, para isso, ela teria que estar bem. Livia tratou de banir de sua cabeça um óbvio sentimento de culpa — que martelaria a cabeça de qualquer mãe dividida entre dois filhos —, dizendo a si mesma que Jamal estava sendo acompanhado de perto, que muitos profissionais se ocupavam dele e que os voluntários podiam ser, algumas vezes por dia, os olhos da mãe que ela não teria tempo de ser.
Comprometemo-nos a visitar seu bebê todos os dias e a repassar-lhe todas as informações que receberíamos. Dessa forma, ela poderia descansar um pouco e visitá-lo em dias alternados. Os voluntários se revezavam para cumprir essa promessa. Alguns faziam companhia a ela, atualizando informações. Alguns falavam em inglês; outros comunicavam-se por mímica ou levando-lhe apenas um abraço e um sorriso. Passamos a ser a família que ela deixou em algum canto do mundo, os amigos que ficaram pelo caminho e os intérpretes das suas dores e de suas demandas.
Perto de completar dois meses de internação, o pequeno Jamal não resistiu. A força de Ayla fez-se presente mais uma vez. A moça de olhos claros e doces enfrentou tudo
aquilo com coragem e serenidade impressionantes para sua pouca idade. Ela precisava estar inteira e íntegra para cuidar de Kaled, que, felizmente, se recuperava muito bem.
Continuamos a manter contato. Nosso papel como voluntários, muitas vezes, avança para fora das paredes do hospital.
E assim, em um domingo de Páscoa, mãe e filho foram convidados por Livia para almoçar em sua casa. Foram recebidos com afeto por toda a família e Kaled, o pequeno brasileiro, foi mimado o dia inteiro. Naquela casa, cristãos e muçulmanos dividiram a mesa, celebrando o amor e a fraternidade. Raças, idiomas, culturas, diferenças… Tudo isso fica pequeno quando os olhares de mães se encontram e falam a língua do coração.