Quase não havia som. As enfermeiras deduziam o desconforto pela “carinha” de choro e não por ouvir algum barulho. O longo período de intubação havia afetado suas cordas vocais e impedia que ela chorasse como qualquer outra criança. Aquele serzinho tão frágil havia nascido com uma grave anomalia no coração — problema que não tinha tratamento em Goiás, seu estado natal. Fora encaminhada ao InCor, em São Paulo, centro de excelência em doenças do coração.
Sua mãe, quase outra criança, a acompanhava. Pequena, moreninha brejeira, descendente de índios e caboclos, moradora de uma pequena comunidade às margens do Rio Araguaia, ela estava, agora, sozinha com sua filha em uma cidade desconhecida e assustadora. Tarefa grande demais para uma garota de 16 anos que, depois de dois meses, não segurou a barra e voltou para casa. Deixou como responsável, em São Paulo, uma senhora amiga de sua avó, que havia saído de Goiás muitos anos antes para tentar
uma nova vida por aqui. Solidarizou-se com a situação da moça e concordou em visitar, ocasionalmente, a bebê.
O espaço deixado pela família logo foi preenchido: as mães das outras crianças internadas revezavam-se para cuidar da pequena Maria Aparecida, ampará-la, dar-lhe colo,
já que os braços de sua mãe não mais estavam disponíveis. Nós, voluntários, mergulhamos nessa corrente de carinho e procurávamos sempre incluir a nenê em nossas visitas. Em especial, Cris, uma dedicada voluntária de doces olhos verdes, empenhava-se em acompanhá-la bem de perto, na sua rotina de visitas à UTI.
Cidinha, como todos a chamavam carinhosamente, conquistava todo mundo, sempre sorridente, alheia a todas as dificuldades que a rodeavam. A primeira vez que teve permissão de sair da enfermaria foi para ir a uma festinha de Dia das Crianças que a AAC havia preparado para os pequenos pacientes. Cores, músicas, movimento… tudo aquilo era novo para ela. Agitava os bracinhos com espanto e alegria. Era, enfim, uma criança vivendo vida de criança, ainda que fosse só por aqueles momentos.
Já estava perto de completar um ano, quando recebemos a boa notícia: Maria Aparecida estava bem e já poderia ir para o quarto terminar sua recuperação e aguardar o
momento de alta. Mas quem a acompanharia? Um bebê não poderia ficar desacompanhado no quarto. Necessitaria de cuidados, assistência, supervisão. As enfermeiras responsáveis teriam que se dividir entre tantos e tantos quartos, tantos e tantos pacientes, sempre correndo de um leito para o outro… Como dar acompanhamento exclusivo a um deles? Quem a carregaria no colo? Quem agitaria o chocalho para distraí-la? Quem a cobriria se esfriasse? Quem velaria seu sono? Começamos, então, a nos revezar. Cada voluntário servia seu turno no quarto de Cidinha, procurando ocupar o lugar que caberia a alguém da família. A mãe não dava mais notícias e a senhora parou de
visitá-la, alegando que não podia cuidar da menina. Contratamos uma enfermeira particular para acompanhá-la à noite. A menina melhorava dia a dia e virou o xodó do hospital. Na falta de uma mãe, Maria Aparecida ganhava uma legião de tios e tias, em uma corrente de compaixão e amor. Estávamos todos muito envolvidos com a história
dessa pequena guerreira, já com tantos desafios a enfrentar. O dia da alta se aproximava. Dia feliz para qualquer paciente, para nós era motivo de preocupação. Para onde
ela iria depois que saísse do hospital? Começaram a contemplar a perspectiva de ela ir para um orfanato. Todos se sensibilizaram com a ideia de Cidinha ficar desamparada mais uma vez.
E foi no meio dessa preocupação e angústia que um anjo surgiu ali ao lado. Dulce – mãe de Maria de Fátima, uma menina perto de seus oito anos, que se recuperava de um
tratamento cardíaco bem sucedido – acompanhava toda a história bem de perto e já nutria um carinho especial por Cidinha. Ela sentiu, naquele momento, que uma história
especial poderia se formar ali. Era casada e ainda tinha mais uma filha, a primogênita, Maria de Lourdes. Decidiu, junto ao marido, que aquela pequena criancinha poderia completar a família que eles tanto se empenhavam em formar e manter. Ambos leram como um sinal a sincronicidade do seu nome, que completaria a constelação com suas outras duas meninas.
O destino estava devolvendo a Maria Aparecida algo que lhe havia sido negado ao nascer. Dulce, decidida a adotá-la, pediu, então, nossa ajuda com a parte burocrática. Era preciso autorização da mãe biológica, mas ela não mandava os documentos assinados. Uma médica da UTI entrou em contato com um juiz e a voluntária Cris foi até lá ver o que podia ser feito e acompanhar todo o processo. Se o juiz não liberasse a adoção, Aparecida seria encaminhada para um abrigo. Naquele fim de semana, Cris chamou algumas amigas. Montaram um rodízio e acompanharam Cidinha. Dulce, já com o sentimento de mãe aflorado em sua alma, dividia-se entre as duas meninas internadas no InCor. Na semana seguinte, a ordem do juiz chegou. Dulce e seu marido puderam, então, assumir seu posto e seu direito de acompanhá-la como familiares.
Ela ainda foi operada mais uma vez e recuperou-se muito bem. Os pais sempre sorriem ao dizer: “Nós temos as Três Marias no céu e dentro da nossa casa também!”