Faltavam-lhe cuidados e um trato mais apurado no visual. Ainda assim, era possível notar um certo ar aristocrático e resquícios daquilo que, algum dia, poderia ter sido descrito como clássico e elegante. Certamente, esse passado não lhe deixava estar à vontade naquele ambiente.
Não que estivesse sendo maltratado ou carecesse de cuidados médicos. Não. Mas estar em um hospital público, dividindo o quarto com um estranho, enfiado em
um amarrotado pijama uniforme, não permitia que disfarçasse seu constrangimento. Desde a primeira conversa, Arnaldo deixou clara sua sólida formação cultural e profissional. Musicólogo, lecionava em diversas escolas e universidades. Ministrava cursos sobre temas que variavam da origem da música brasileira até os grandes nomes da ópera, passando por estudos técnicos de estrutura melódica e pesquisas sobre a obra de Villa-Lobos, de quem era grande admirador.
Falava muito. Gesticulava mais ainda. Imerso nesse universo musical, lembrava-me alguma coisa de Pavarotti e Plácido Domingos. Ficaria muito bem ao lado deles, como o terceiro entre Os Três Tenores. Os fios de cabelo eram poucos e grisalhos, porém suficientemente compridos para não se manter no lugar. Mechas rebeldes insistiam em cair-lhe sobre a testa, revelando uma calvície já bastante acentuada.
Parecia mais velho que seus sessenta e poucos anos. Certamente, por conta de seu coração, que já lhe pregara outros sustos. Naquele último, como morava sozinho, tivera de ser socorrido por vizinhos que, aliás, nem eram seus amigos. Solteiro, sempre morara com a mãe. Cuidavam-se mutuamente. Com a morte dela, alguns anos antes, rnaldo “perdera o chão”, conforme confidenciou-me em uma de nossas conversas. “Já tinha perdido a outra grande mulher de minha vida, a dama do piano Sophia Mello Oliveira, que foi minha tutora musical. Quando perdi mamãe” — disse com a voz embargada —, “fiquei completamente só”.
Preocupava-se, mesmo antes da cirurgia, com seu pós-operatório no apartamento. Como enfrentar a escada que separava seu quarto dos outros cômodos? Como se virar
sozinho com banho, comida, afazeres domésticos, contas a pagar… se não podia arcar com os custos de uma funcionária? Tinha perdido tudo. Sua paixão pela música fez com que ignorasse todos os conselhos de permanecer no ramo financeiro, em que atuava, e arquivasse de vez tudo que aprendera na Fundação Getúlio Vargas, onde havia se formado.
Preferiu, depois de pegar o diploma, seguir sua verdadeira vocação e investiu muito nessa nova formação: montou uma biblioteca especializada no assunto, comprou livros antigos, colecionou discos raros, garimpou partituras em antiquários… e o dinheiro se foi. Ressentia-se de morar tão mal, mas não lhe haviam sobrado recursos para recolocar os azulejos que se desprendiam das paredes do banheiro e da cozinha. A pintura não aguentara as constantes infiltrações, tornando a massa aparente, e a falta de manutenção fazia com que a água já não saísse de algumas torneiras.
Mesmo assim, dizia que nunca sairia de lá, pois, apesar dos pesares, o lugar era grande o suficiente para abrigar a sua história. Onde mais guardaria toda sua coleção, seus ensaios e textos? Seus tratados e pesquisas, suas publicações? “Posso perder tudo, mas sem isso não consigo viver” — confidenciou-me, mais uma vez, mostrando que
aquele mundo formado por notas musicais, por biografias, por cordas e teclados era o que alimentava seu corpo e seu espírito.
Sua operação correu bem e tudo se encaminhava para que ele recebesse alta em breve. Certa manhã, depois da minha corrida diária no parque do Ibirapuera, estava com mais tempo e resolvi conhecer o Museu Afro Brasil. Na saída, não resisti e parei na lojinha. Logo, fui atraída pela pequena seção de livros e, em dois minutos, já havia escolhido um bonito exemplar (que vinha acompanhado de um CD) sobre a influência dos ritmos africanos na música brasileira e na obra de Villa-Lobos. “Nossa, o Arnaldo vai adorar”, pensei. À tarde, cheguei ao Hospital feliz da vida, com minha compra debaixo do braço. Encontrei-o rodeado de cadernos e papéis rascunhados. A mesinha regulável, onde o paciente faz suas refeições, havia se tornado uma escrivaninha de trabalho.
— Estou preparando o material para meu próximo curso — disse, sem alterar o ritmo quase frenético com que completava mais uma página. Esperei que terminasse e lhe
estendi o pacote, dizendo que era um presente. Ele reuniu as folhas soltas, empilhou os cadernos e livros e abriu um espaço sobre a mesa, onde colocou o pacote. Então, parecendo um jogador de pôquer a filar as cartas de seu jogo, começou a desembrulhá-lo bem devagarinho, como para prolongar um momento que não queria que acabasse. Antes de terminar a “operação”, as lágrimas já escorriam por sua face. Também emocionada, pedi que se controlasse, para não sobrecarregar o coração que se restabelecia. Com a voz fraquinha, que, naquele momento, já não poderia pertencer a um tenor, disse que aquele tipo de emoção só fazia bem. Pinçou uma das folhas, em meio a tantas outras, e mostrou-me a página inicial de sua pesquisa, onde se lia: Curso: Música Africana e sua influência no Brasil. Devolvi a folha, enquanto uma lágrima também começava a cair Para esse livro, achei que Arnaldo gostaria de uma foto vinda daquele “passado aristocrático”. Enviei um e-mail à Escola de Música do Estado de São Paulo — Tom Jobim, onde ele lecionava, para tentar achar sua foto no site. Junto a ela, veio a informação de que o professor havia falecido. Isso foi cerca de um mês após sua alta. A cadeira número oito da Academia Brasileira de Música, que ele ocupava e que — orgulhava-se em dizer — pertencera a D. Pedro II, já pertencia a um novo titular. Em meio à tristeza que senti, consolou-me a ideia de que ele deve estar achando sua casa muito mais bonita agora.