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MARIA

Maria limpou cuidadosamente as tesouras. Uma, grande, com as pontas compridas e afinadas; outra, com uma espécie de haste dentada, e uma terceira, menor, com as lâminas curtas em formato curvado. Pegou o resto do equipamento e, olhando para mim, disse:


— Estou pronta. Vamos? Subimos para o sétimo andar. Manoel, leito 7043, cabelo e bigode — Informava a fichinha. Ele seria o primeiro do dia, o primeiro na fila da
cabeleireira. Maria, moça simples e simpática, saía do salão cinco estrelas onde era funcionária e dedicava uma tarde de sua semana ao trabalho voluntário no hospital.


Manoel, senhor de idade, mas com aparência bem conservada, era o típico português. Vindo para o Brasil quando criança, ainda conservava um leve sotaque “apertadinho”,
que revelava uma provável convivência com seus patrícios. Já instalado, em uma cadeira colocada no corredor interno em frente aos quartos, o Sr. Manoel olhava no
espelho improvisado à sua frente, enquanto dava as instruções. Indicava a Maria onde devia ser mais curto, sem deixar, no entanto, a orelha à mostra, e onde ela não poderia

cortar, sob pena de expor uma falha no alto da cabeça, que ele se esforçava para esconder. O bigode, por sua vez, havia crescido muito e já avançava sobre os lábios, o que dificultava-lhe a higiene.

 

Ela escutava com atenção as instruções e procurava segui-las à risca. Durante o corte, conversaram sobre as origens de Maria, igualmente portuguesa, fato que deve ter animado o Sr. Manoel a discorrer sobre as belezas de além-mar e as delícias da cozinha lusa — de que há muito ele se privava para prevenir a chegada de uma temida
diabetes. Trocaram receitas de bacalhoada, trocaram impressões sobre os fados de Amália Rodrigues e sobre muitos outros assuntos em comum que carregavam em
suas linhagens. Era como voltar para um grande colo, esse de suas origens.

A conversa, fácil e solta, era constantemente interrompida por novas instruções sobre o corte. O assunto, que, àquelas alturas, já havia atravessado o oceano de volta para
nossa terra, girava em torno à fundação do time de futebol da Portuguesa, por membros da colônia e amigos de seus avós. À primeira vista, o papo poderia parecer banal, sem maiores pretensões. Porém, visto com cuidado, era nítido que aquele encontro adquiria a importância dos grandes eventos. Era como se o Sr. Manoel voltasse à vida fora do hospital. Ele se esquecia de curativos, exames, válvulas e enfermeiros, para concentrar-se em decisões como: qual era o melhor lado para jogar seu pequeno e espetado topete ou a largura ideal do bigode.

Um pequeno espaço de tempo, no qual era ele quem dava as cartas e não o Destino. Um fragmento temporal em que o foco de sua atenção era seu visual e não sua saúde.
Ao fim de ambos — corte e conversa —, ele pediu o espelho para examinar mais de perto o resultado. Gostou do que viu. Chegou mesmo a comentar que tinha ficado melhor do que quando cortava com o Sr. Almeida, velho barbeiro amigo da família.

Enquanto Maria guardava seus apetrechos, o Sr. Manoel levantou-se, ajeitou a golinha do pijama — como quem aperta o nó da gravata — e disse, sem esconder um sorriso de satisfação: — Agora eu tô bonitinho para esperar a patroa. Naquele dia, enquanto caminhava pelos corredores, pensava que o que presenciei não foi um corte de cabelo.
Testemunhei o resgate — talvez fugaz — da autonomia de um homem. O reencontro com sua história e com sua imagem no espelho. O retorno a suas origens, a busca eterna pelas raízes e a redescoberta do orgulho de pertencer a uma comunidade. Deu-me vontade de reencontrar o Sr. Manoel, levando comigo dois cálices de vinho do Porto, para podermos brindar esse lampejo de vida.

 

 

 

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