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RAIMUNDO

Raimundo era aquele tipo de pessoa que a gente não sabia dizer a idade. Podia ter 28 ou 42. Também não seria surpresa descobrir uma terceira idade. Os traços, ainda jovens e sem rugas, pareciam não combinar com os olhos fundos e a face algo encovada. Maranhense, saudoso de sua terra, estava internado havia três meses à espera de um coração que teimava em não chegar.

Nesse meio tempo, gostava de se ocupar com as revistas que levávamos todas as semanas. Deixava claro que não servia qualquer uma. Bastava aparecermos perto de sua
porta para que ele se aprumasse na cama, de modo a ser o primeiro a escolher. Eu ficava tentando imaginar seus assuntos preferidos, tarefa que era particularmente intrigante, pois, se em uma semana pedia publicações de fofocas, na seguinte escolhia uma de cunho científico, depois um gibi e, em seguida,… culinária!!


“Tão simples e tão humilde, mas cheio de interesses e vontade de saber”– pensava comigo mesma. Naquela semana, eu estava especialmente animada. Achei que ia agradar em cheio, separando uma vasta reportagem sobre Chico Xavier, que já havia sido personagem de várias conversas nossas e de quem se dizia grande admirador. Porém, quando estendi a revista, já aberta na página certa, indicando que ele lesse a manchete, percebi um certo constrangimento.

 

Então, entendi. Em um segundo, havia descoberto o segredo guardado pelos quatro meses que já contava em sua internação. “Eu não sei ler”. Falou baixinho. Fez uma pausa, depois completou: “Nem escrever”.


Fiquei sem saber se aquela voz fraca e acanhada era resultado da doença que avançava ou da vergonha que mostrava em sua expressão. Não consegui deixar de perguntar: “Por que, então, gastava tanto tempo com cada revista, parecendo consumir até a última gota de informação?”

“É para ver as figuras” – respondeu, com uma obviedade que não tinha me ocorrido. A única coisa que me veio à cabeça, naquele momento, foi dizer a ele que esse problema já estava resolvido: assim que recebesse alta, a gente ia dar um jeito de arrumar uma escola ou um curso para que ele se alfabetizasse. Raimundo ficou muito contente com a possibilidade de realizar um antigo sonho: o de escrever, de próprio punho, uma carta a sua mãe, que deixara no Maranhão.

E por que ele não aprendera as letras? Também escutei o motivo. Caçula de uma família numerosa, ele fora o escolhido para acompanhar o pai no trabalho da roça, enquanto os irmãos iam para a escola. Voltei para casa triste, pensando que, mesmo com toda animação demonstrada, talvez ele não tivesse tempo de se empenhar nessa nova luta. A espera por um novo coração nem sempre cria condições para que esse e outros sonhos se realizem… Lidar com o fator tempo é sempre um desafio.

Ainda com essa questão em mente, a tristeza converteu-se em ideia: “Será que não seria bom ele começar a estudar lá mesmo, no hospital? Será que não seria até
um estímulo em sua luta pela vida? Uma perspectiva que o ajudasse a manter-se vivo?”


Bingo!! Era isso que eu ia fazer: ensinar-lhe a ler e a escrever! Mas como? Sou formada em administração de empresas e atuo no campo das artes plásticas. Não tinha a
menor ideia de como alfabetizar alguém! Completamente insegura quanto à iniciativa, quando dei por mim, estava na seção infantil de uma livraria, atrás de cartilhas de alfabetização, cadernos de caligrafia, joguinhos de letras e figuras, e de tudo mais que pudesse ajudar na tarefa.

No encontro seguinte, Raimundo ficou surpreso diante de tanto material e um pouco assustado com a nova responsabilidade, mas topou o desafio. Comecei a passar-lhe pequenas tarefas, que seriam corrigidas pelas voluntárias dos outros dias da semana. E, assim, aconteceu.

Um tempo depois, Maria Luísa, que deveria corrigir a tarefa passada na véspera, ligou-me dizendo que ele tinha completado, com muito capricho, não só a primeira folha
do caderno de caligrafia, , conforme eu havia pedido, mas o caderno todo. Assim fora, até a letra Z. E as sílabas, e as primeiras palavras. Na leitura, seu desempenho não era pior. Como uma criança pequena, com sede de coisa nova, lia pedacinho por pedacinho das palavras, para juntá-las no final.

Seu companheiro de quarto, inclusive, começou a reclamar comigo, pois Raimundo teimava em manter a luz acesa até tarde da noite, fazendo suas lições, enquanto o
resto do andar já estava às escuras. Quando ele entrou em seu sexto mês de internação, comecei a preocupar-me seriamente. Não em relação ao estudo. Àquela altura, ele já conseguia ler pequenas histórias e escrever frases simples, com poucos erros. Era sua saúde que me preocupava. O corpo muito magro, o rosto mais encovado ainda, ressaltavam os olhos que se envesgavam, e seus movimentos tornavam-se mais lentos e pesados.


Ele estava definhando, mas canalizava o pouco de vida que ainda havia em seu corpo para os estudos. Não o via sem um lápis nos dedos ou um livro nas mãos. Em um dia em especial, estava ansiosa para encontrá-lo, pois havia levado um monte de material para novos exercícios. Mas quando vi sua cama vazia… Meu primeiro pensamento foi… Será que ele não conseguiu esperar?! 

Antes que a tristeza tomasse conta de mim, corri para o balcão da enfermagem e, lá, disseram-me que ele havia sido encaminhado, pouco antes, para o centro cirúrgico,
pois um órgão compatível para transplante tinha aparecido. Assim, depois de encontrar as palavras, ele encontrou seu novo coração O transplante foi muito bem sucedido!

 

Quase dois meses depois, passada sua consulta de controle, Raimundo subiu para nos visitar. Entre feliz e surpresa, dei um abraço num moço forte, corado, de cabelo
repicado e brinquinho em uma das orelhas!!! “Como meu coração era de um rapaz de 18 anos, tenho que me comportar como tal”, disse. Em seguida, me mostrou, com orgulho indisfarçável, a carta de próprio punho, escrita para sua mãe.


Não tenho mais notícias dele há dois anos. Mas também não procuro por elas. Na minha imaginação e na minha certeza, está vendendo cocos em alguma praia do Maranhão. E escrevendo cartinhas para sua mãe.
  

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