Eu tinha cerca de 18 anos, um monte de amigos e um ônibus alugado que nos levaria à fazenda de um deles. Garantia de boa diversão para os feriados. Na divisão dos quartos, caí com Regininha, que já era “velha” amiga de meu futuro marido — na época, apenas namorado. Ali começaria, entre nós, uma história de amizade que duraria a vida toda. Crescemos, casamos, tive filhos. Gostávamos de estar juntas, tínhamos afinidades, interesses comuns. Foi quase uma decorrência natural a ideia de sermos sócias em alguma coisa. Não importava muito no quê. Foram experiências divertidas e diversas. Fizemos trufas de chocolate, malhas, conjuntos de roupas combinados. Enquanto isso, Regininha descasou, casou, teve um filho, e casou pela terceira vez. Esse movimento todo não combinava com ela, pois, conforme sempre me dizia, queria ter tido
aquele casamento tradicional, do tipo “até que a morte nos separe”. Mas não foi assim, e ela também não se acomodou.
Entre erros e acertos, sempre foi atrás de sua felicidade. Nossa sociedade continuava e crescia. Fazíamos bijuterias, roupas e acessórios de praia. Daquela vez, era mais sério. Fornecíamos para várias lojas, vendíamos para fora de São Paulo. Fizemos sucesso e ganhamos dinheiro. Atravessávamos a cidade atrás dos fornecedores, das fábricas, das lojas. Acho que ficávamos mais tempo uma com a outra do que com nossas famílias. Eu, sempre reclamando de seu inseparável cigarro, e ela, de meu perfume, que lhe causava dor de cabeça. Com minha mudança para Miami, encerramos a sociedade, mas não a convivência. Ficou até hospedada lá comigo algumas vezes. Quando voltei com a ideia de fazer algum tipo de trabalho voluntário, depois de dois anos, dá para imaginar em quem pensei para embarcar nessa comigo?
E, é claro, ela topou. Então, lá fomos nós, Regininha e eu, para o InCor, para revigorar a Associação Amigos do Coração, assistindo pacientes carentes internados no hospital.
Ela logo se encantou com as crianças e foi recíproco. Para envolvê-las, tornou-se expert em bexigas de bichinhos e, a cada dia, incluía uma nova forma aprendida num site
de balões. Ainda que, por vezes, seu cachorrinho estivesse mais para um cisne, seu jeito espontâneo e divertido fazia com que todos requisitassem sua presença. Animada com seu progresso, resolveu incrementar suas visitas com… mágicas!!! E não é que os truques funcionavam? Sua alegria, simpatia e boa vontade consertavam qualquer lencinho que teimasse em aparecer da cartola.
Com o correr dos anos, trouxemos mais gente, aumentamos o grupo de voluntários, ampliamos as atividades da Associação. Cúmplices na alegria, nas aflições, na tristeza, no entusiasmo, na tentativa de prover os pacientes de suas necessidades mais básicas. Regininha era popular com os internos de todas as idades, com os acompanhantes, com as enfermeiras, com as faxineiras… Todos a adoravam. Mas algumas estrelas insistem em voltar para o céu. Por alguma razão difícil de entender, sua trajetória brilhante durou um tempo menor do que todos gostaríamos.
Então, um mês depois daquele dia tão feio, tão duro, dia em que um acidente escureceu nosso horizonte, penso nela toda vez que chego ao hospital. Quisera poder fazer
uma mágica e apagar tudo isso, tirá-la da cama de UTI em que ela se encontra, quase inerte, em coma. Impossível. Às vezes, por mais amizade que exista entre duas pessoas, a única coisa que nos sobra é a aceitação do inexorável. Ou a fé. Mas nada está em nossas mãos.
Sem o filho único, sem o marido, sem a mãe — todos perdidos no acidente — e sem sua consciência, dói-me profundamente não poder fazer nada, ser tão completamente
impotente perante os fatos. Aprendemos que os amigos são nosso esteio nas horas difíceis, mas nem isso eu posso exercitar agora. Minhas palavras não serviram para consolar, meus braços não puderam amparar, nem meu ombro contribuiu para aliviar um peso tão grande. Agora, a única coisa que posso fazer por você, minha
querida amiga, minha irmãzinha, é chorar, em seu lugar, a lágrima que você ainda não pode derramar.
Esse relato foi escrito na época em que Regininha estava em coma. Foram 7 anos assim. Eu a visitei todas as semanas no hospital em que ficou internada. Não sei se ela percebeu. Não sei se sentiu minha presença. Não sei se sabia quem eu era. Nada disso importava. Eu sabia quem ela era e o que tinha representado para mim. Queria honrar tudo aquilo que ela havia me dado: amizade, lealdade, apoio, cumplicidade. E, se houvesse sequer um fiapo de consciência em alguns momentos, queria que ela se sentisse acompanhada e acarinhada. Irmã querida, recusada pela morte e rejeitada pela vida, por todos aqueles encarcerados anos, agora, descanse em paz.