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ISALTINO

Aquele par de olhos teimava em seguir-me. Parecia um detetive não muito bem treinado em seu trabalho. Daqueles que deixam o investigado perceber que está sendo observado. Era a terceira vez que eu passava em frente a seu quarto. Assim era a geografia do interior do hospital: um corredor de quartos enfileirados. Na parte de trás, todos os quartos têm uma porta de correr de vidro (que pode ser velada por uma cortina acoplada, tipo persiana) e desembocam em uma espécie de terraço coberto. Esse largo corredor, que unifica o fundo dos quartos, era onde fazíamos a maioria das nossas atividades. Nesse pequeno terreno comum, onde pacientes podiam ficar sem estar muito distantes dos seus leitos, trocas intensas aconteciam.

 

Como as acomodações ficam alinhadas, formando uma longa fila, o trajeto é fácil. Os voluntários acabam fazendo um contínuo movimento de ir e vir, passando várias
vezes pelas mesmas portas. Às vezes, temos que pular alguns quartos e retornar mais tarde, conforme o estado de um de seus pacientes. Também nunca entramos quando havia médicos,  enfermeiros ou outros profissionais do hospital realizando algum procedimento com os internos. Outras vezes, eles estão dormindo. Mais raramente, recebendo visitas. Nesse vai e vem do terraço, não tive como evitar novo encontro de olhares com aquele paciente. Completamente apoiado na porta, suas mãos e testa deixavam uma marca engordurada no vidro, e sua respiração fazia com que seu rosto perdesse a nitidez atrás da mancha embaçada, reforçada a cada expiração.

 

Dei-lhe um sorriso e um aceno de mão, que não foram correspondidos. Parecia querer me dizer que aquilo não era suficiente, que queria uma visita como aquelas que seus
vizinhos recebiam. Mas como explicar-lhe o que já estava explicado? Afinal, estava sozinho no quarto e, pendurado na porta de entrada, um pequeno cartaz em papel verde afastava quem ousasse chegar perto: “Paciente em isolamento”. 

 

Aprendemos logo que esse tipo de doente não pode ter contato com ninguém que não seja do corpo clínico, pois necessita de cuidados especiais, seja porque está mais suscetível a infecções, porque está sendo monitorado ou por conta de cuidados de assepsia e profilaxia pré ou pós cirurgia. Claro que ele sabia a razão de seu isolamento, mas seus carentes olhos azuis pareciam não concordar com ela, fosse qual fosse. “Paciência”, pensei. “Infelizmente não posso fazer nada”. O tempo passou rápido naquele dia.   Quando me preparava para ir embora, saindo do último quarto que visitei, não tinha outra opção de caminho. Teria que passar por ele novamente. “Tomara que esteja dormindo ou que esteja distraído com outra coisa”. Esse pensamento incomodou-me. Afinal, eu estava ali exatamente para fazer contato com os pacientes e não para evitá-los. Mal consegui prosseguir com minha autorrepreensão, quando reparei que havia uma pequena mesinha, ali no terraço, na frente de sua porta. Era o criado-mudo que acompanhava cada leito, onde os pacientes guardam seus pertences pessoais, que ele havia colocado para fora do seu quarto.

 

Sobre o móvel, pequenas esculturas feitas em papel. Pequenos pedaços coloridos, dobrados com precisão milimétrica, formavam lindas obras de arte. Impressionada com a  delicadeza de cada peça, com a criatividade na escolha das figuras e cuidado no uso das cores, parei para observar bem de pertinho. Isaltino, ainda apoiado no vidro, abriu um tantinho da porta de correr, o suficiente para que eu conseguisse ouvi-lo dizer: “Sou eu que faço”.

O olhar tornara-se tranquilo, assim como o leve sorriso que, agora, aparecia em seu rosto antes angustiado. Não falou mais nada. Abriu um pouco mais a porta, de modo a recolher o criado mudo, e voltou a fechá-la. Sim, ele sabia que tinha de ficar isolado. Mas agora, do lado de fora, alguém também sabia que ali — naquele quarto — não havia somente um paciente e sua doença. Havia um artista e sua obra. 

 

Até hoje, uma de suas bonequinhas fica sobre minha mesa, como a lembrar-me de que, às vezes, o corpo pode estar aprisionado. Contudo, a nossa alma, se quisermos profundamente, sempre acha brechas para espalhar encantamento.  

 

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